quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Estado violência


Temos assistido à repetição de um forte discurso de alerta sobre a violência urbana, gerando o medo e a necessidade de medidas “fortes” para conter a situação de insegurança vivida nas grandes cidades. Reduzir a idade penal para conter a presença dos adolescentes no crime; encarceramento em massa da população com aumento das penas; aquisição de armamentos novos e mais eficazes para as polícias militares; investimento em tecnologia de vigilância da população, criação de batalhão de policiais preparados para impedir manifestações de rua; uso de forças armadas para patrulhamento de espaços civis precarizados com a ausência do Estado.

Não há dúvida de que a considerada população vitimizada de fato sofra com a ocorrência constante de crimes, dos mais corriqueiros e leves aos mais trágicos e horríveis. E nesta sociedade agressivamente machista, especialmente as mulheres têm sido alvo desta aparente desordem das cidades.
Contudo, há a produção de eficientes máquinas de controle social fundamentadas no discurso da violência urbana e na legitimação de políticas de uso da força na segurança pública, o que têm alimentado uma violência desmedida e histórica por parte de agentes do Estado. Ano após ano, em continuidade à lógica de combate ao inimigo interno institucionalizada durante a ditadura pela doutrina de segurança nacional, o Estado de Direito não tem obtido resultados positivos no incremento da capacidade de uso da força por parte dos equipamentos de segurança pública. Além de pouco modificar o quadro da forma de vida vulnerável dos grandes centros urbanos, as informações publicizadas indicam o aumento constante da violação de direitos por parte dos aparatos e agentes do Estado, com destaque para o crescimento das cifras de brasileiros assassinados por ações de instituições de segurança.

São chacinas operadas por policiais e com apuração muito lenta, quase inexistente, pelos órgãos de justiça. A autorização da ação violenta nas periferias contra os jovens atingiu seu ápice de legitimação com a discussão e aprovação parcial na Câmara Federal da redução da maioridade penal. Não é preciso tornar-se lei a definição social e biológica do “inimigo”, mas é suficiente que o discurso social e das instituições assim o considerem.

Parece esquizofrênico, mas quanto mais o Estado é violento, mais o quadro social se apresenta como de crise produzida pela violência urbana e mais se autoriza o investimento na capacidade de uso da violência por parte das políticas de segurança pública. Parece-nos que tal quadro não é o resultado de falhas ou má execução destas políticas. Ao contrário, há neste processo a eficaz produção de uma sociedade de controle, disciplinamento e punição, produzindo o cidadão domesticado e manso, para que assim ele seja ainda mais produtivo sem tomar em suas mãos a própria potência de agir politicamente. Do ponto de vista da eficácia desta política de segurança pública é mais importante uma situação de violência urbana do que de relações harmoniosas e ordeiras.

Parece haver um cálculo da aplicação da força por parte do Estado, dando à sua ação um aspecto teatral e espetacular, com o objetivo de produzir essencialmente dois efeitos práticos.
O primeiro seria a disseminação do terror, mobilizando uma opinião pública com a sensação de vulnerabilidade e alimentando o jogo do medo mantido pelo Estado, o que institucionalmente e em larga escala ocorre ao menos desde a ditadura. Neste contexto, pouco importa se as polícias têm a imagem de eficientes ou de serem completamente desestruturadas. O segundo efeito é o de mostrar para a população que a força aplicada será sempre que necessário acima da legalidade. Nesta prática de segurança pública a lei funciona como um parâmetro de medida da violência vinda dos agentes do Estado para aqueles que saírem da normalidade social e política.

Exemplo trágico deste modelo foram as chacinas de Osasco e Carapicuíba, levadas a cabo por policiais agindo no formato dos antigos esquadrões da morte dos anos 70 e contando com a impunidade – resultado da conivência das ouvidorias, da própria polícia e do judiciário com os crimes do Estado. Se a grande mídia tenta colar a ideia de um evento abusivo por parte de alguns policiais, a modificação da cena dos crimes e de destruição de provas praticadas por policiais que atenderam as ocorrências mostra a cumplicidade do sistema aomodus operandi. Segundo recente relatório da ONU (de outubro de 2015), ocorre no país uma política sistemática de “limpeza” dos centros urbanos sob a aparente justificativa de preparar as cidades para os mega eventos esportivos (Copa do Mundo e Olimpíadas). No caso de Osasco, a demora e os recorrentes “erros” nos procedimentos de apuração estão produzindo o terreno para que não se coloque em risco a política atual de segurança.

Assim, cria-se o cidadão de bem, pacífico, trabalhador (ou proprietário) e ordeiro, e o vagabundo, vândalo, louco, drogado, arruaceiro, o indivíduo fora das bordas que delimitam o possível autorizado pela ordem. Desta forma, a combinação do jogo do medo com a percepção de uma força acima das leis, a segurança pública em prática no país visa demonstrar que o aparato jurídico é insuficiente para proteger os cidadãos.

É por estas razões que campanhas pela diminuição da maioridade penal ou pelo recrudescimento das leis são vitoriosas mesmo quando não atingem seu objetivo aparente e discursivo. Não é necessário alterar a menoridade ou aumentar a pena por determinado crime, pois a pauta conservadora de seus debates já criam um imaginário e legitimam a ação violenta e violadora por parte do Estado.

A legitimação da violência do Estado não parece ser um engano ou falha do Estado de Direito, mas sim a ação política de uma sociedade do controle e do bloqueio de suas potências criativas e transformadoras.

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